quarta-feira, 8 de abril de 2020

"Contagiosa queixa": as epidemias de bexiga e sarampo na Amazônia colonial e na vila de São José de Macapá


 Por Professor Mestre Bruno Rafael Machado Nascimento

Ao longo da história da Amazônia colonial existiram várias epidemias, a saber: sarampo, cólera, malária, febre amarela, bexigas (varíola). Esta última foi a que mais impactou a população no fim do século XVIII e durante todo XIX. A enfermidade chegou com os colonizadores e também através dos navios negreiros vindos da África. No século XVII, as principais vítimas foram os indígenas aldeados (que viviam reunidos em missões sob a administração dos padres) que desconheciam e não estavam acostumados com as moléstias, sobretudo o sarampo e a bexiga. A vida nos aldeamentos agravava o contágio, pois viviam centenas de nativos.

Indígenas Yanomami
Este povo estava sendo ameaçado por uma epidemia de sarampo. Fonte: https://www.survivalbrasil.org/ultimas-noticias/11968

No ano 1661 houve uma epidemia de bexiga no Estado do Maranhão (corresponde atualmente à Amazônia e parte do Nordeste) que segundo o padre jesuíta João Felipe Bettendorf, iniciou na casa de uma moradora da capitania do Pará que teve um filho morto por conta da varíola. Na visão do religioso a doença foi um castigo divino por conta da expulsão dos missionários jesuítas pelos moradores. Afinal essa ideia distorcida de que Deus castiga vem desde a antiguidade. Assim o padre escreveu:
Assim se houveram com grande arrependimento por verem, com seus olhos, a mão de Deus, tão rigorosa em castigá-los com as bexigas de pele de lixa, que iam acrescentando tudo, de sorte que parecia os queria acabar por uma vez, porque em breves dias, como o mesmo vigário exortava aos padres, eram mortos dois mil índios deste contagioso mal, com tanto desamparo que já não havia quem enterrasse os corpos mortos, assim dos índios forros das aldeias, como dos escravos das casas e fazendas dos moradores, os quais mesmo em pessoa traziam de noite a enterrar (BETTENDORF, 1990, p. 201-202. Atualização da grafia feita por mim).
Este “contagioso mal” se espalhou com velocidade e atingiu principalmente indígenas e negros escravizados. Mas será que era punição divina? Obviamente que não. Para o viajante e naturalista Charles - Marie de La Condamine (2000, p. 113), que esteve no Grão-Pará em 1743, os problemas das bexigas: “faziam então um grande estrago, e os índios na maior parte se refugiavam nas aldeias circunvizinhas”. Para o francês, a doença era ainda mais grave aos indígenas recém-chegados às missões dos padres, pois seus corpos não estavam habituados à determinadas enfermidades, ou seja, o sistema imunológico estava totalmente suscetível. Chama atenção o fato de um missionário carmelita usou uma técnica que combatia essa moléstia:
Há quinze ou dezesseis anos que um missionário carmelita dos arredores do Pará, vendo todos os seus índios morrer um após o outro, tendo lido numa gazeta o segredo da inoculação, que fazia então muito barulho na Europa, julgou prudentemente que, usando tal remédio, tornava pelo menos duvidosa uma morte que era certa empregando remédios ordinários. Um raciocínio tão simples deveria ter ocorrido a quantos são capazes de reflexão, e que viam o destroço da moléstia sabendo dos sucessos do novo tratamento; mas esse religioso foi o primeiro na América que teve a coragem de executá-lo. Ele já perdera a metade dos índios; muitos outros caíam diariamente; ele ousou fazer inocular a varíola em todos aqueles que não tinham sido atacados, e destes não perdeu um só. Outro missionário do rio Negro seguiu o seu exemplo com o mesmo resultado (LA CONDAMINE, 2000, p. 114).

Essa técnica utilizada pelo frei José Madalena já era utilizada no oriente há mais de mil anos e foi introduzida na Europa no século XVIII. Ele teve acesso a ela por meio de leituras que circulavam em vários continentes difundindo conhecimentos científicos e religiosos. Ela ficou conhecida como “variolização”  que “consistia na inoculação de material retirado das pústulas de um enfermo na pela de um indivíduo são” (SÁ, 2008, p. 821). A prática espalhou-se pela Amazônia colonial, porém não foi a solução. A “variolização” fazia com que as pessoas manifestassem formas mais brandas da doença em comparação as que se contaminava pelo o contágio comum, mas às vezes indivíduos morriam e desenvolviam formas graves ou ficavam com cicatrizes pelo corpo.
      Como já exposto, as populações indígenas foram as que mais sofreram levando à depopulação. Os nativos eram a principal força de trabalho e em tudo os colonizadores dependiam dos seus trabalhos: eram os guias, remadores, caçadores, guerreiros, pescadores, farinheiros, construtores. Diante disso, a saída encontrada pelo governo português foi intensificar o tráfico de pessoas escravizadas vindas de vários pontos da África. A partir de 1755, com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, o tráfico negreiro aumentou consideravelmente e com ele o aumento do contágio da bexiga, principalmente, pelas péssimas condições nos porões dos negreiros.
         Preocupado com a contaminação o governo português ordenou vistorias em embarcações e as que viessem de locais infeccionados ou com escravizados doentes deveriam ser submetidas à quarentena. Como as medidas não atingiram o resultado esperado devido a falta de vigilância, o governador do Grão-Pará, Martinho de Souza e Albuquerque escreveu para o Senado da Câmara de Belém em 20 de julho de 1778:
Novamente a mim se verifica no bem lembrado projeto, em que entraram de querer mandar estabelecer um Lazareto de querer mandar digo um Lazareto, no qual indistintamente houvessem de fazer quarentena as embarcações de qualquer partes vindas, e que sua carga contenha escravatura afim de se acautelarem no modo possível aquelas terríveis e prejudiciais consequências infelizmente já aqui experimentadas, e que com efeito nos consta estão presentemente padecendo, e suportando os moradores da capitania o Maranhão por causa da indiferença com que ali se permitiu a licença para entrar, e descarregar no porto daquela cidade uma embarcação vinda da costa leste infeccionada com bexigas (APP. DOC. 609, In: VERGOLINO-HENRY; FIGUEIREDO, 1990, p. 182-183).

          A ordem foi estabelecer um “Lazareto” (lugar de controle sanitário, onde pessoas chegadas ao porto eram postas de quarentena) para que todos os navios negreiros que chegassem ao porto de Belém fizessem quarentena para tentar evitar o aumento do contágio da varíola. Observou algo semelhante com o que estamos vivendo em 2020? Certamente que sim. A importância da quarentena como estratégia de controle e redução de contaminação, pois o sistema de saúde do passado e o de hoje não dá conta de atender todos os necessitados. 
         Entre os anos de 1748-1750 ocorreu na capitania do Grão-Pará uma epidemia de Sarampo que: “não houve tapuia, ou quem dele tivesse sangue, que não padecesse da força do contágio” (LEONARDO, 1749). Certamente há exagero na afirmação, porém os efeitos do sarampo foram desastrosos não apenas pelos seus impactos na vida dos indivíduos, mas também econômicos e sociais. O tenente coronel Teodósio Chermont relatou que:

Teve princípio o contágio de sarampo, que se comunicou o Estado [...]. Na cidade, e em todo o Estado fez tal estrago, que por isso mereceu o distintivo de ser chamado sarampo grande. Ele não era mortífero por si, mas da disenteria acessória nenhum escapou (CHERMONT, 1720 apud FERREIRA, 1885, p. 29).

         Em geral, o sarampo causa altas mortalidades em pessoas que não estão imunes e que estão expostas ao agente infeccioso, tal como ocorria em aldeamentos dos missionários localizados próximos aos povoados. A alta taxa de mortalidade estava ligada também às consequências da infecção: pneumonias e diarreias. 

Os reflexos na vila de São José de Macapá
 
       Na vila de Macapá, na segunda metade do século XVIII, os principais atingidos também foram os negros escravizados e indígenas que trabalhavam na construção da fortaleza de São José de Macapá. Devido o ajuntamento de pessoas e as condições de trabalho seus corpos estavam mais expostos ao contágio. 
       Passava-se o dia 8 de março de 1765 na vila de São José de Macapá e a construção da fortaleza estava a todo vapor. Negros escravizados e indígenas formavam a principal força de trabalho. A fuga era constante, pois a maioria estava ali compulsoriamente e aproveitava para fugir e formar mocambos (quilombos) pelas as bandas do rio Araguari. Outra  preocupação das autoridades coloniais da vila foram as doenças que matavam os operários da grande fortificação. O governador de Macapá assim escreveu para seu superior e governador do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de Ataíde Teive:

[...] Este grande número de doentes não só pretos, mas também de índios da fortificação, da Serraria e Anauerapucu, com alguns soldados, me obrigou indespencavelmente a lhe fazer mais uma casa de palha: separando os de bexiga (varíola), e de sarampo que vieram de calcetas desta cidade em distinta casa, para que as queixas contagiosas serão comunicadas aos pretos, e mais índios, como me ponderou, e requereu o cirurgião: tendo até o presente falecido 3 pretos e 4 índios (NUNO DA CUNHA VARONA a 8 de março de 1765, São José do Macapá, in: VERGOLINO-HENRY; NAPOLEÃO, 1990, p. 81. Grafia atualizada por mim).

       A estratégia utilizada pelo comandante Nuno da Cunha Varona para evitar o contágio de bexiga e sarampo foi fazer uma casa separada para os enfermos conforme orientação do “cirurgião”. Até aquele momento, 3 negros escravizados e 4 indígenas já tinham falecido devido as enfermidades. O que facilitava os corpos ficarem doentes? As péssimas condições de trabalho (observe que vieram de “calceta”, ou seja, um instrumento que constituía em uma argola colocada no tornozelo de um prisioneiro que se unia à sua cintura por meio de corrente de ferro), as várias horas de trabalho, falta de condições de higiene, péssima alimentação e o contato com as pessoas infectadas.
       Outra carta escrita no mês seguinte dá conta da situação em Macapá:

O sarampo se vai propagando de sorte nestes moradores, que se acham doentes no maior número de cem: ficando no hospital 55 índios da fortificação, e 98 pretos e da serraria 22: Havendo já desta contagiosa queixa falecido 10. Aos pretos ainda se lhe não tem comunicado esta enfermidade, e os 7 que se achavam ausentes já foram reconduzidos, e fica o número deles sendo de 169; por terem falecido cinco (NUNO DA CUNHA VARONA a 9 de abril  de 1765, São José do Macapá, in: VERGOLINO-HENRY; FIGUEIREDO, 1990, p. 81. Grafia atualizada por mim).

                                                                                                    
         Portanto, na Amazônia colonial e na vila de São José de Macapá as doenças, sobretudo varíola e sarampo consumiram e enfraqueceram várias vidas, principalmente de indígenas e negros escravizados. No período analisado ainda não havia as vacinas e a principal medida foi a quarentena. Talvez a História nos dê pistas para sairmos da situação de pandemia em que vivemos, mas indica que os que mais sofrem são os mais vulneráveis e excluídos da sociedade.

Referências

BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

CHAMBOULEYRON, Rafael e tal. “Formidável contágio”: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.4, p. 987-1004, out./dez. 2011.

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro, 1885.

LA CONDAMINE, Charles – Marie de. Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas. Brasília: Senado Federal, 2000.

LEONARDO, Manuel Ferreira. Noticia verdadeyra do terrível contagio, que desde Outubro de 1748 até o mez de mayo de 1749 tem reduzido a notavel consternação todos os Certões, terras, e Cidade de Bellém, e Grão Pará, extraída das mais fidedignas memorias. Biblioteca Nacional de Portugal, 1749.

SÁ, Magali Romero. A “peste branca” nos navios negreiros: epidemias de varíola na Amazônia colonial e os primeiros esforços de imunização. Revista Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 818-826, dez. 2008 (suplemento).

VERGOLINO – HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo público do Pará, 1990.